Helena caminhava todos os dias para dissipar a intensidade de seu
sentir, sempre com pressa, necessitando mostrar eficiência em cada ato.
Premeditada, pensava adivinhar pensamento, fingia entender o incompreendido e
solidava-se cada dia mais, vivendo a vida como técnica e não como arte.
Helena cansou. E cansou de todo, tudo, todos.
Helena guardava uma carta no fundo de uma gaveta perdida... de um tempo
muito mais dela. Carta escrita e nunca enviada para Eulália, colega de faculdade,
com quem tivera o mais puro encontro. Passaram dois anos juntas, em profunda
amizade, imaculado desejo, satisfeito em roçares de pele, beijos fugidios e
longos abraços. Ambas eram estudantes de filosofia e devoradoras de livros,
passavam horas confabulando sobre seus “achados”, suas conversas eram pura
magia e o prazer se desprendia e aquecia até quem passava perto.
Eulália tinha um namorado, era daqueles relacionamentos de amor e ódio, que
nunca dão certo, mas que levam anos para que ambos percebam que tal insistência
das partes é apenas vício em infelicidade, reminiscências de menos-valia,
pretensões vãs de mudar o outro a partir do externo, enfim, vaidade.
Em nome da vaidade e do desejo corporal que nutriam um pelo outro, os amigos casaram.
E Helena simplesmente afastou-se por não suportar ver um grande amor partir
para uma viagem insólita. Gostava dos dois, mas detestava-os juntos.
A vida os apartou: responsabilidades profissionais, viagens, mudanças. Seus
caminhos jamais se cruzaram. Entretanto, Helena guardava a amiga encantada. A
moça teve muitos parceiros sexuais, todas as experiências possíveis, todos os
tipos de companhias e muitos gostos foram provados e aprovados. Porém, à noite,
naquele momento que espreita a manhã, era Eulália que vinha ter com ela, sempre
Eulália.
Voltara ao seu país há pouco, menos de dois meses, ainda estava entre
dois lugares, posição desconfortável porque faz visitar o passado com uma
recorrência ácida, crítica, onde a pergunta "o que estou fazendo
aqui" ulula a todo instante. Estava detestando o departamento onde
trabalhava e as desavenças entre os acadêmicos, muito cansativo...
No retorno à casa, após dia exaustivo, aulas modorrentas, pasmaceira
total, Helena foi procurar documentos exigidos pela universidade e deparou-se
com o seu velho caderno de anotações, que jazia na gaveta perdida. Pegou o
caderno e dele caiu um envelope azul claro, cor preferida de Eulália, e ela foi
puxada para trás. Desabou. Reconheceu, um tanto desolada, que tinha 45 anos,
todo o sucesso material possível, mas a felicidade que sentira junto à doçura
de Eulália jamais tinha sido revivida. Só em tocar aquele envelope azul, imagens
começaram a surgir, lembrou-se um pouco de quem fora.
Respirou fundo, sentada no chão, recostou-se numa poltrona e leu a carta,
escrita há mais de 20 anos:
Alegria. Outro dia me disseram que esta palavra é mântrica, palavra
poderosa que trás à vida possibilidades inusitadas. Quero dizê-la mil vezes e
vivê-la mais mil, até fechar os olhos derradeiramente. Alegria Alegria Alegria...
digo agora três vezes “para fazer efeito”, como um Ogã ensinou... Que sua
energia impregne todos os aspectos da minha vida. A verdade é que longe de você
os caminhos são ermos, como diz a poesia, lembra? a que lemos juntas? Longe de
ti não há rosas que perdurem e eu temo confessar até mesmo para mim que é o que
sinto. Assumir esse fato me tira o ar, me devolve o ar e eu pulso, eu vibro, eu
assanho e desassanho. Eu desalinho quando tu não estás. Não quero
ficar grudada em você, mas com você a vida é mais bonita. A palavra que nos
define é união.
Independente das palavras proferidas e sentidas, existem as palavras
cravadas, tatuadas, palavras de outro mundo, numa língua áulica de alguma
paragem que já se foi – seu significado está perdido; sua significância,
entretanto, é eterna na minha história – preenche as lacunas de sentido. Elas
queimam na minha pele, gostaria de dizer que iluminam, mas elas queimam.
Independente do queimar das palavras, para além de qualquer coisa, há o
sentir. Ele me toma como um encantado. Não é com a mente que poderei apreender
este amor, já me disse uma sábia...
Nessas horas em que sou “tomada”, acordo, e os fios de minha existência
te procuram, num caminho já pisado, já revisto, conhecido e reconhecido fora
até, ouso dizer, das areias do tempo... esse “tempinho” que usamos por aqui...
e toca ler Leibniz para entender em que dobra, em que “mônada” estamos, onde me
perdi e não consegui costurar tua vida na minha, já que juntas estamos até o
fim.
Eu desalinho quando tu não estás. Em presença, carne, voz e silêncio.
Da tua pele desprende-se um cheiro que é só seu. De nosso encontro
desprende-se um perfume que é só nosso. Quando finges não perceber tal beleza,
esse ato fura minha carne. Quando resistes em vivenciar essa aventura, seja lá
o que for, arranca minha tez. Fico desprotegida e nua. E você nem vê...
Mas se assim é, é porque assim tem de ser, por algum motivo que minha
visão turva não consegue atinar. E, talvez, em algum momento mágico, as
muralhas cairão. A questão é que, de tanto ser assim, aprendi, finalmente, o
não pensar, o não entender, o não controlar: e vivo, vivo o que há com uma
intensidade de furacão, tromba d´água, incêndio... Surpresa é perceber que essa
vivência acaba vertendo para um equilíbrio, um riacho que rola plácido, uma
fogueira quente de São João, que ilumina a noite escura, uma brisa leve que
sussurra orações luminosas aos meus ouvidos – o que vivo me ensina. Todo esse
extremo me leva ao centro, ao cerne e jamais tinha me conhecido tanto, em corpo
todo, em Ser.
A tristeza nunca permanece então, desvanece em gotas diárias de gratidão
pelo aprendizado. É deste lugar, sob a Presença do Invisível, que vem a
ALEGRIA. Ela é manifesta, silenciosa, uma fumaça... um bruma, deixa um aroma e
tudo é possível. Assumo nesta quase prece que permaneço querendo-te em minha
vida. Permaneço em bom combate pelas coisas justas e por nós.
Compartilhar vida contigo, mesmo que por breves momentos, já que é assim
que se permite, me faz feliz. Nutrir esperança sem espera e expectativa é
fortalecedor de muitas outras narrativas internas... é o que foi buscar a Amazona
que me habita, que não pede licença, nem passagem, guerreira cheia de Deus-a,
destemida, grávida de arte, livre leve forte. Eu posso até desalinhar sem sua
companhia, mas não deixo de encontrar com aquilo que vive em mim além do nome,
e o amor próprio nunca coruscou tanto na minha alma. Então é isso, amor meu, Eu
Te Amo e basta.
Uma lágrima espessa correu pela face de Helena, nunca mais sentira seu
ser furacão, tão pouco seu ser brisa; sentia-se nada, vazia.
Levantou-se, suspirou, pegou os documentos, coloco-os numa corretíssima
pasta de plástico transparente e foi ler um livro profundíssimo, tentativa de
esquecer o que estava tatuado na alma. A carta jamais foi entregue e Helena
deixou-se ir, perdida entre o conhecimento e o não saber. À deriva.
Como sente Helena!
ResponderExcluirComo vibra Helena!
Helena está viva!!!
Porque sente e não se mente.
Viva Helena!
Gostei muito.
Bjs.
Porque sente e não se mente
ExcluirLinda poesia
Obrigada
Amiga Mônica, adorei o texto... Não sei... Mas, fez-me lembrar um livro belo da Ana Maria Machado, 'Canteiros de Saturno'.
ResponderExcluirGrata pela oportunidade da leitura.
Bjs da Angela
Gratidão, querida Angela, por me ler.
ResponderExcluirUm beijo!