Rodrigo estava passando pelo beco, o mesmo de quase todos os dias, o beco que dá no seu bar preferido. O bar, um quadrado com um balcão em U e aqueles bancos altos, cobertos com um muito gasto courin vermelho. Quatro horas da tarde, hora de poucos personagens. O velho que mora na rua ao lado, num sobradinho que fica em cima do brechó, está sentado na mesma cadeira de sempre, na extrema direita do U. Rodrigo sorri ao imaginar o desgosto do velho se algum desavisado parasse para tomar uma coca e sentasse na "sua cadeira". Ele chega à mesma hora, senta na mesma cadeira, come a mesma comida e fica por ali a observar as mulheres.
Procurando algum dinheiro no bolso e descobrindo que tem o bastante para umas três cervejas, Rodrigo começa sua apreciação. Enquanto bebe seu primeiro gole do dia, observa uma discussão entre um grupo de pivetes, discutem algo sobre futebol, coisas banais, como se estivessem na sala de casa, entre a família. De repente, a discussão para, seus olhos acompanham uma mulher de generosas formas que passa sozinha. Ela, imponente, não olha para o lado. Os meninos deixam a discussão e ficam a apreciar o material.
Então, José chega, devagar, como sempre. Era um doce companheiro de copo. Ele espera o namorado na mesma hora, todos os dias, após o trabalho. Chegou mais cedo porque tivera uma discussão com sua chefe, "uma dona infeliz", segundo ele, como na música de Chico. Começa a contar o caso, mas Rodrigo não ouve muito da história, fica observando os detalhes do rosto do amigo, as marcas; e imagina como seria seu rosto na hora do prazer. Pensamento estranho, retorna Rodrigo. Ao final da narrativa sobre o episódio com a chefe, da qual Rodrigo não ouvira palavra, ele faz como lhe ensinaram em algum lugar - balança a cabeça e diz:
- Dureza...
Todos ficam felizes e partem para outro assunto. José pergunta como estão as coisas, Rodrigo responde que tudo está caminhando bem, mas que poderia estar melhor.
- As ruas estão pouco interessantes, meu amigo, nada de muito novo acontecendo.
José adverte Rodrigo, dizendo que o amigo corria riscos demais e pergunta por Hélio. Rodrigo fala então da instabilidade de Hélio, seu mau hábito de nunca cumprir promessas, que ele não sabe viver intensamente, mas acha que sabe.
José presta muita atenção às palavras de Rodrigo, acha curioso que ele aponte covardia em Hélio. Pensava, "o que um intelectual vê neste lugar". Era difícil de compreender, até para ele, mas jamais perguntaria. Uma lei das ruas, perguntas demais são impróprias.
Nesse momento, chega o Olho, ganhou o estranho apelido por causa de uma cicatriz que o fazia parecer um pierrô dos velhos carnavais. O Olho é malandro profissional, personagem das ruas, moral duvidosa, um bom papo, de certo. Rodrigo jamais toparia um programa com ele por ser escorregadio demais. O Olho já chega entabulando uma conversa sobre os vários tipos de policial que existem: o bom moço, o corrupto, o violento, o cristão e outros tipos que ele afirmava existir.
- Eu já topei com todos os tipos, dá até para escrever um livro, só de enrolação que me meti e escapei já dá uns dois capítulos.
Dizem que o Olho era filho de classe média, alta, desgarrado há muito de suas origens.
Rodrigo se animou com a conversa e começou contar uma que lhe ocorrera faziam uns 5 dias: estava com um amigo num parque e foi flagrado, contava animado da tensa negociação que sucedeu. No final das contas, ficou sem um relógio e tudo foi "esquecido". Enquanto falava, José reparava no indisfarçável orgulho do amigo.
Rodrigo tinha passado muito tempo tentando pertencer àquele mundo; e agora, estava ali, conversando com a "realidade", como costumava falar. Nada de bancos de universidade, nada de estudos de caso, estava ali e conversava com a vida real. Já se via também como um personagem daquele universo, os becos lhe eram convidativos, os malandros lhe eram conhecidos, os códigos da rua eram abertos para ele à medida em que vivia. Teria abandonado tudo por esta experiência. Estava bem com ela, por mais que conhecidos de outros ambientes não conseguissem compreender, por mais que fosse tachado de insano, por mais que tivesse que dividir seus mundos, porque não seria possível unificá-los.
O mundo da rua não se une com outros mundos, os códigos da rua são outros. A moral é outra. O respeito que se impõe pode ter vários matizes: força física, força pessoal, malícia nos golpes, dribles nos infortúnios. Esses artifícios faziam parte do respeito que poderia ser conquistado, nem sempre pelo medo, mas sempre pela força. Rodrigo havia aprendido a viver neste mundo, era seu desejo. Queria morrer, como diz a música: de bala, crime ou vício... não queria esperar a morte.
Um novo personagem aparece, Severino, paraibano solitário. Lá no meio da conversa, onde esses papos sobre vida, morte, aparecem sempre com cores diferentes, próprias do lugar, Severino conta que tinha se metido numa briga na obra. Um dos colegas havia duvidado de sua macheza e Severino tinha baixado o sarrafo. E toca contar a briga em detalhes, onde os golpes pegaram etc. Rodrigo observava o pescoço de Severino ficando cada vez mais vermelho, quando chegou Paulo.
Rodrigo, num movimento involuntário, aprumou o corpo, espigou-se.
Paulo era um personagem querido para Rodrigo, um amor, embora tivesse relutado meses para admiti-lo, talvez por acreditar que em sua vida não coubesse mais amor deste tipo, uma mistura com paixão desenfreada; ou porque achasse que este tipo de sentimento não teria lugar naquele ambiente em que escolhera conviver. Rodrigo descobriu, surpreso, que o amor cabe em qualquer lugar. Eros, afinal, é um Deus. Não haveria ali, entretanto, lugar para pureza, para alegrias domésticas, mas não era isso que Rodrigo procurava e Paulo era a representação ideal do contraditório. Extremamente violento, empenhado em manter essa imagem intacta, era também um menino em busca de compreensão, mas a compreensão dispensada a ele teria que ser ofertada nos meandros das risadas noturnas, nas brincadeiras corporais mais íntimas, nunca em público, nunca abertamente, sempre na penumbra.
Desde de que conhecera Paulo, Rodrigo ia num redemoinho, num rio desconhecido, sem rumo, com rumo; às vezes, as águas ficavam mornas; às vezes, as corredeiras se acalmavam, mas quase sempre o movimento dos atos de Paulo atordoavam Rodrigo. Mas ele não conseguia mais evitá-lo; chegou a esta conclusão após uma briga e um porre. Concluiu, resoluto, que poderia ter evitado o confronto no início, mas não agora. Era um caminho sem volta, ele amava aquele homem incomensuravelmente.
Paulo chegou e cumprimentou a todos. Olhando para Rodrigo, fez um movimento breve com a cabeça. Todos os presentes sabiam que os dois tinham algo, mas também sabiam que, nas ruas, palavras ou movimentos extremados podem lhe custar o respeito e a tranquilidade. Rodrigo percebeu imediatamente, pelo olhar de Paulo, que não ficariam ali por muito mais tempo. Sairiam para loucuras na noite. Um pouco mais de conversa fiada, duas cervejas e os dois tomaram seu caminho.
Enquanto se afastavam, desviando-se dos outros transeuntes, José, que observava discretamente, disse para si mesmo:
- Esses dois...
E voltou-se para os amigos de copo e entabularam mais uma conversa sobre futebol.
Monica Valeria Iaromila
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